Este é o Miscelânea, por Júlio Lucas

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sábado, 21 de novembro de 2020

O pelourinho ainda existe (Vidas negras importam)

 

Poucos sítios históricos ostentam nos dias atuais o pelourinho como foi no passado. A famigerada coluna geralmente fincada no centro de praças para as habituais sessões de castigos de escravos, felizmente há muito foi aposentada. No entanto, a ideia original desse instrumento de imposição de uma suposta supremacia, muito comum nos mercados da antiga Europa, que chegou ao Brasil como símbolo de julgamento e castigos públicos de cativos insubordinados, ainda permeia de alguma maneira a nossa sociedade contemporânea. Na capital baiana, o antigo largo no Centro Histórico que ganhou o divertido apelido Pelô transfigurou-se em alegria pela força e resistência da cultura afro-brasileira. Mas nem tudo é samba-reggae ao sul dos trópicos. O tal totem da tortura, por outro lado, também persiste em toda nação sob as mangas do Estado.

Relativizar a discriminação racial sob o estranho argumento  de que “existe desigualdade, mas não o racismo estrutural no Brasil”, infelizmente não impede que oito a cada dez pessoas mortas pela força policial sejam pretas ou pardas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020.

Um pouco de conhecimento e boa-fé deveriam ser o bastante para a compreensão de que é exatamente a desigualdade social, a empurrar jovens pretos para a margem da sociedade, o maior legado escravocrata que persiste nos resquícios sutis do racismo estrutural. Para esses pragmáticos, que pensam ter caído de paraquedas no presente, os que nunca devem ter se afeiçoado aos livros de história, fica a frieza dos números atuais a seguir: segundo a Rede de Observatórios da Segurança a taxa geral de homicídios no Brasil, que é de 28 pessoas a cada 100 mil habitantes, entre os jovens negros (19 a 24 anos) ultrapassa os 200. Pode ser que diante desses índices, o cinismo resmungue na surdina outro mantra anacrônico: “morreram por que estavam errados, no lugar errado, na hora errada”. Mas o que dizer para as mulheres vítimas de feminicídio geralmente em suas casas, em que os dados dão conta de que as negras representam 61%?

Talvez outra estatística seja mais convincente para dissuadir os adeptos dos argumentos nefastos e despertar nestes um pouco de empatia pelas vítimas dos dois lados de uma mesma moeda: o relatório produzido pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indica que a maioria dos policiais assassinados (65%) também é preta ou parda, embora sejam a minoria nas corporações.

Interpretar letras e números pode ser uma tarefa difícil para quem reluta contra o conhecimento, a boa-fé e a empatia. Então, o que dizer ao abrir os olhos e enxergar que o Dia da Consciência Negra de 2020 começou com imagens estarrecedoras que abalaram o país? João Alberto Silveira Freitas, 40 anos, negro, sendo brutalmente assassinado dentro de um supermercado, na zona norte de Porto Alegre. Pode até alguns privilegiados de frases feitas defenderem que foi uma ocasional fatalidade.

Seria então uma trágica curiosidade a ocorrência dessa barbárie justamente no Rio Grande do Sul, estado onde surgiu a iniciativa para celebrar no dia 20 de novembro, data atribuída ao nascimento de Zumbi dos Palmares, as reflexões sobre as questões dos afro-brasileiros? Não, não foi fatalidade. Não, não é uma curiosa coincidência. Com números, letras e imagens escancaradas, não é necessário sentir na pele para tentar compreender a realidade do preto e pardo no maior destino do comércio de vidas negras do planeta, um dos últimos países a abolir oficialmente a escravidão e desistir do tráfico negreiro. Quem nasce preto, é preto todos os dias e cotidianamente se depara com o racismo estrutural silencioso, velado. E volta e meia, essa verdade contida sob as mangas do país tropical culmina em cenas aterradoras cada vez mais captadas por câmeras de aparelhos celulares para o mundo ver. Provas irrefutáveis que o pelourinho da tortura e da morte ainda não foi extirpado por completo dos corações e mentes daqueles que mais o negam e tanto o praticam. 

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