Relativizar a discriminação
racial sob o estranho argumento de que “existe desigualdade, mas não
o racismo estrutural no Brasil”, infelizmente não impede que oito a cada dez pessoas mortas pela força policial sejam
pretas ou pardas, segundo o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2020.
Um pouco de conhecimento e boa-fé deveriam ser o bastante
para a compreensão de que é exatamente a desigualdade social, a empurrar jovens
pretos para a margem da sociedade, o maior legado escravocrata que persiste nos
resquícios sutis do racismo estrutural. Para esses pragmáticos, que pensam ter
caído de paraquedas no presente, os que nunca devem ter se afeiçoado aos livros de história,
fica a frieza dos números atuais a seguir: segundo a Rede de Observatórios da
Segurança a taxa geral de homicídios no Brasil, que é de 28 pessoas a cada 100
mil habitantes, entre os jovens negros (19 a 24 anos) ultrapassa os 200. Pode
ser que diante desses índices, o cinismo resmungue na surdina outro mantra
anacrônico: “morreram por que estavam errados, no lugar errado, na
hora errada”. Mas o que dizer para as mulheres vítimas de feminicídio geralmente em suas casas, em que os
dados dão conta de que as negras representam 61%?
Talvez outra estatística seja mais convincente para dissuadir os
adeptos dos argumentos nefastos e despertar nestes um pouco de empatia pelas
vítimas dos dois lados de uma mesma moeda: o relatório produzido pelo Fórum
Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) indica que a maioria dos policiais
assassinados (65%) também é preta ou parda, embora sejam a minoria nas
corporações.
Interpretar letras e números pode ser uma tarefa difícil para
quem reluta contra o conhecimento, a boa-fé e a empatia. Então, o que dizer ao abrir
os olhos e enxergar que o Dia da Consciência Negra de 2020 começou com imagens
estarrecedoras que abalaram o país? João Alberto
Silveira Freitas, 40 anos, negro, sendo brutalmente assassinado dentro de um supermercado,
na zona norte de Porto Alegre. Pode até alguns privilegiados de frases feitas
defenderem que foi uma ocasional fatalidade.
Seria então uma trágica curiosidade
a ocorrência dessa barbárie justamente no Rio Grande do Sul, estado onde surgiu
a iniciativa para celebrar no dia 20 de novembro, data atribuída ao nascimento
de Zumbi dos Palmares, as reflexões sobre as questões dos afro-brasileiros?
Não, não foi fatalidade. Não, não é uma curiosa coincidência. Com números, letras
e imagens escancaradas, não é necessário sentir na pele para tentar compreender
a realidade do preto e pardo no maior destino do comércio de vidas negras do
planeta, um dos últimos países a abolir oficialmente a escravidão e desistir do tráfico negreiro. Quem nasce
preto, é preto todos os dias e cotidianamente se depara com o racismo
estrutural silencioso, velado. E volta e meia, essa verdade contida sob as mangas do país tropical culmina em cenas
aterradoras cada vez mais captadas por câmeras de aparelhos celulares para o
mundo ver. Provas irrefutáveis que o pelourinho da tortura e da morte ainda não
foi extirpado por completo dos corações e mentes daqueles que mais o negam e
tanto o praticam.
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